Mariana Doce
Nasceste feminina, linda menina, lindíssima Mariana, vinda das entranhas das gerais.
Ah...! Como era bom ver os teus cabelos..., admirar a tua beleza exuberante serpenteando os morros abaixo durante o dia, como também à noite.
Noites..., ah, noites...! Noites frias, às vezes, outras encaloradas, essas noites ora escuras, ora enluaradas; como era maravilhoso mergulhar nas profundezas dos teus cabelos ondulados, efêmeros e refrescantes, que furtivamente de cima para baixo se desdobravam, tudo espelhando, ah...! Encantadora menina. Como teus cabelos eram resplandecentemente prateados; mais que isso, eles eram um rio vivo, que alimentava a vida, eles eram um rio de vidas, eles eram um paraíso, eles eram maravilhosos e tinham o semblante moço, eles eram o Rio Doce.
Ainda hoje ouço, do passado, o estampido suave do eterno deslizar dos teus belos cabelos entre árvores e rochedos, por terras planas e também pelas acidentadas; naqueles tempos os teus cabelos desciam felizes e lindamente pelas encostas, às vezes serenamente, outras, em movimento rebuliçoso, se desprendendo cachoeiras abaixo, soltando sensualmente aos ares gotículas em forma de cristais esparsos, que transando com a luz do sol, davam um inebriante filho, arco-íres multicolorido.
Também das camadas mais encorpadas formavam-se, ao longo desse perpétuo despencar, a partir das médias e das grandes altitudes, lindíssimas vestes brancas de noiva, com suas magníficas caudas espumantes e rastejantes a se ramificarem, em forma de ondas circulares, rumo às bordas das enormes bacias naturais de águas límpidas e refrescantes, que se constituíam num mavioso colosso.
Desde o Descobrimento das terras brasilis tu vivera uma vida de princesa fértil e ainda que fosses virgem, procriara e muito; geraste vidas, doara vidas, alimentara vidas, tu foras mãe perfeita, que o digam os teus vizinhos, ribeirinhos ou não...
Agora, pobre menina, tristemente o mundo testemunha à tua triste agonia, à tua sina miserável; tu que já sofrias, tu que tanto fora maltratada, de ti arrancaram as riquezas e a tua beleza, estupraram tua singeleza, tiraram de ti, furtivamente, a meiguice de menina virgem, inocente, feliz.
Certo dia, porém, depois de tanta judiação que tu sofrera, tu deras sinal de que já te sentias exausta, que já não suportavas mais tanta tortura e que não mais poderias resistir a tanta humilhação, contudo, não te levaram em consideração, cerram olhos e ouvidos de diante do teu clamor, do teu desespero, enfim; zombaram de tua dor.
E depois de tudo isso, pobre menina! Tu te tornaste prenhe, prenhe de descaso e vazia da tua altivez, da tua exuberância, da tua majestade, enfim foste totalmente despida dos teus valores mais íntimos; tu havias sido demasiadamente humilhada por mal-feitores de toda horda, e, em conseqüência desse contínuo padecer, as paredes da tua barriga demonstraram gigantescos inchaços, elevações irregulares, erupções que mais pareciam pustemações, apareceram enormes e tenebrosas varizes, não obstante tudo isso, nada, nada desses sinais foi considerado, pelos teus agressores, para atestar o teu estado doentio e desolador.
Assim tu pariste, pariste o subproduto da maldade humana, humanidade essa que sem pudores continuamente te violentou, por isso..., em função desse crime de lesa-pátria, tu concebeste essa prenhez espúria contra a tua própria vontade e das tuas entranhas se precipitaram vorazmente multidões de vermes famintos, sedentos de almas e espíritos, transmudando vidas em mortes, devastando a imensidão do seu transcurso.
Da tua vida vicejante no passado não restaram pedras sobre pedras, árvores do lado de árvores; animais da tua fauna foram extintos, animais domésticos idem, casas do lado de casas não restaram, só ruínas enfim; o que fora vida se metamorfoseou em morte; as tuas tristezas se arrojaram abrupta e velozmente caminho abaixo enchendo tudo, durante o seu tropel de horror, de extremada destruição, deixando após si um terrível cenário de terra devastada, e, neste caso em particular, também de leito arruinado.
O filho-monstro da maldade humana, após se desprender do teu útero enfermo, deixando a tua barriga dilacerada, com as tuas vísceras à mostra, ferida de morte e a tua consciência em prantos, percorreu a terra brasilis transportado pelo teu fluxo sanguíneo, derramado pela exaustiva dor do parto, que, para ti, fora mais uma absurda violência.
Tu que nasceras nas gerais, os teus cabelos perpassaram pelos muitos janeiros, e também têm muito do espírito santo, para todo o sempre; tu que já foras a partir das gerais, ainda nos teus primórdios, menina de sorte; os teus cabelos foram belos e fortes, um verdadeiro colosso, deles brotara um rio de esperança concretizando a certeza da vida, da exuberância; eles eram desejados como um doce, mas atualmente foram materializados, para a tristeza de muitos, num tenebroso lamaçal da morte.
por Raimundo Nonato, dezembro de 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário